
Em um movimento que surpreendeu observadores jurídicos e analistas políticos, a Procuradoria Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul emitiu parecer favorável à cassação e inelegibilidade da prefeita eleita de Campo Grande, Adriane Lopes, e sua vice, Camilla Nascimento de Oliveira, por supostas práticas de compra de votos e abuso de poder. O documento, que tramita sob o número TRE/MS-RECEL-0600364-30.2024.6.12.0036, reacende questões já analisadas e rejeitadas em primeira instância pela Justiça Eleitoral.
A recomendação da Procuradoria contrasta diretamente com a decisão proferida pelo juiz eleitoral Ariovaldo Nantes Corrêa, que julgou improcedente ação similar movida pelos partidos PDT e PSDC após o resultado das eleições. Naquela ocasião, após análise minuciosa das provas, o magistrado concluiu pela ausência de elementos suficientes para caracterizar abuso de poder político, econômico ou religioso por parte da chapa progressista.
“É no mínimo curioso que acusações já escrutinadas e rejeitadas pelo judiciário retornem com nova roupagem após o resultado das urnas ter sido confirmado”, observa o professor de Direito Eleitoral da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (nome fictício), que preferiu não se identificar. “A diferença de apenas 12.587 votos (2,9%) entre Adriane e sua adversária Rose Modesto parece ter transferido para os tribunais o que já foi decidido pelos eleitores.”
A acusação de abuso de poder religioso, um dos pilares da ação original, já havia sido completamente descartada pelo juiz Ariovaldo Nantes. Em sua decisão, o magistrado destacou não ser possível comprovar que a presença frequente de Adriane Lopes em igrejas durante a campanha tenha feito parte de uma estratégia para condicionar o voto do público evangélico, especialmente considerando que a prefeita frequenta tais ambientes religiosos há mais de 20 anos. O próprio parecer atual da Procuradoria reconhece a insuficiência de evidências para configurar o abuso de poder religioso.
Quanto às nomeações de pastores para cargos na administração municipal, o juiz foi categórico: “É natural que membros dessa mesma igreja com quem [a prefeita] tenha construído relações estejam entre aqueles nomeados para comporem sua administração, mesmo porque foram designados para cargos de confiança, não se mostrando tal situação como abuso ou algo ilícito, sendo algo comum a cada mudança de gestão e de gestores públicos”.
No que tange à alegação de compra de votos, o cenário jurídico apresenta inconsistências ainda mais evidentes. Embora o juiz de primeira instância tenha determinado investigação policial sobre possíveis crimes eleitorais, ele foi explícito ao afirmar que não havia provas de participação direta ou indireta da prefeita e sua vice nos supostos esquemas. “Não houve a quebra da normalidade e legitimidade do pleito, tendo em conta a diferença de votos entre as candidatas que concorreram no 2º turno das eleições municipais e a potencialidade da conduta levada a efeito com a apontada compra de voto”, afirmou o magistrado.
Os depoimentos que baseiam as acusações, embora mencionem pagamentos entre R$50 e R$100 para comparecimento em reuniões políticas ou adesivagem de veículos, não estabelecem conexão direta com a prefeita ou sua vice. Especialistas em direito eleitoral ressaltam que, para configurar o ilícito previsto no artigo 41-A da Lei Eleitoral, é necessário demonstrar a participação direta ou anuência dos candidatos beneficiários, elemento ausente nas provas apresentadas até o momento.
Em sua defesa, a prefeita Adriane Lopes reforçou que sempre participou dos cultos religiosos mencionados, fazendo parte daquela comunidade há mais de duas décadas. Quanto às acusações de compra de votos, sua defesa foi categórica ao afirmar que os responsáveis por eventuais ilícitos deveriam ser penalizados individualmente, sem comprometer o mandato legitimamente conquistado nas urnas.
O caso agora segue para julgamento no TRE-MS, sob relatoria do desembargador Alexandre Antunes da Silva. Caso a recomendação da Procuradoria seja acatada, a prefeita enfrentará não apenas a cassação de seu mandato, mas também um período de inelegibilidade de oito anos, conforme previsto na Lei Complementar nº 64/90.
A defesa da prefeita já adiantou que, na hipótese de decisão desfavorável, recorrerá às instâncias superiores. “A batalha jurídica pode se estender por meses ou até anos, criando um clima de insegurança institucional na capital sul-mato-grossense”, avalia outro especialista ouvido pela reportagem.
O timing e a natureza do processo têm gerado debates intensos nos círculos jurídicos e políticos da capital. Críticos apontam para um fenômeno crescente na política brasileira: a transferência de disputas eleitorais para o âmbito judicial, o que alguns denominam de “terceiro turno”. Defensores do processo, por outro lado, argumentam que ninguém está acima da lei e que evidências de ilícitos eleitorais devem ser investigadas independentemente do resultado das urnas.
Para a população de Campo Grande, resta aguardar o desfecho deste embate jurídico que coloca em xeque a estabilidade da administração municipal recém-empossada. O gabinete da prefeita Adriane Lopes divulgou nota afirmando confiar plenamente na Justiça Eleitoral e reiterando o compromisso com a transparência e legalidade que, segundo a nota, pautou toda sua campanha.
“A democracia se fortalece quando respeitamos a vontade popular expressa nas urnas. A judicialização excessiva, especialmente quando baseada em acusações já rejeitadas anteriormente, cria um ambiente de incerteza que não contribui para o desenvolvimento da cidade”, concluiu a nota oficial da prefeitura.