Enquanto embolsa lucros bilionários, empresas mantêm frota insuficiente e suja para atender população campo-grandense

O cenário do transporte público em Campo Grande beira o colapso com o Consórcio Guaicurus operando sob condições alarmantes: cada veículo precisa atender impressionantes 7,6 mil passageiros. Enquanto embolsa lucros astronômicos, o grupo empresarial mantém apenas 460 ônibus para dar conta da demanda de 3,3 milhões de usuários mensais na capital sul-mato-grossense.
Esses números preocupantes vieram à tona durante as oitivas da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investiga o Consórcio na Câmara Municipal. Nesta segunda-feira (12), o fiscal aposentado Luis Carlos Alencar Filho revelou a drástica redução no volume de passageiros desde o início da concessão: “No início do contrato em 2012 tinha 6,5 milhões de passageiros mês, com cerca de 507 veículos. Essa demanda permaneceu até 2016. E veio caindo e hoje estamos 3,3 milhões”, afirmou em depoimento.
O ex-servidor, contudo, levantou questionamentos sobre eventuais prejuízos financeiros das empresas. “A demanda caiu muito mais que a proporção de carros em operação”. Ele sugeriu que um economista poderia esclarecer melhor questões relacionadas à receita do Consórcio, mas garantiu que os números apresentados têm base confiável na bilhetagem eletrônica: “Sistema auditável seguro, qualquer dúvida pode consultar, é muito eficiente e confiável. Essa informação não tenho dúvida sobre isso”, ressaltou.
Mina de ouro sobre rodas
Os empresários do transporte público de Campo Grande representam o paradoxo perfeito: reclamam constantemente de prejuízos enquanto acumulam fortunas impressionantes. Uma auditoria contábil realizada pela equipe técnica da prefeitura nas planilhas do Consórcio revelou uma receita extraordinária de R$ 1.277.051.828,21 (um bilhão, duzentos e setenta e sete milhões, cinquenta e um mil, oitocentos e vinte e oito reais e vinte e um centavos) apenas entre 2012 e 2019.
Vale ressaltar que este montante bilionário corresponde somente aos oito primeiros anos do contrato de concessão. Os valores foram apurados com base nos balanços fornecidos pelas próprias empresas que integram o Consórcio.
Enxugamento da frota
Em depoimento prestado em 5 de maio, o diretor-presidente da Agereg (Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos), José Mario Nunes da Silva, confirmou a significativa redução na frota. “Com a pandemia houve a redução do número de usuários. Com essa redução, o que aconteceu? Tinha 575 ônibus, hoje 460, supre a necessidade”, avaliou o gestor.
Contrariando a experiência cotidiana dos passageiros que enfrentam ônibus superlotados, José Mario insistiu que a quantidade atual de veículos é adequada: “Não tem o que aumentar, tem o que repor, trocar, fazer a substituição dos ônibus atuais por ônibus novos”.
Na mesma linha, o fiscal aposentado defendeu surpreendentemente que “nunca faltou ônibus” em Campo Grande. “O plano funcional sempre existiu, talvez não quanto as pessoas queriam, mas supre a demanda”, opinou, em declaração que destoa da percepção dos usuários do serviço.
Sistema de fiscalização
Alencar destacou que a Agetran dispõe de um CCO (Centro de Controle Operacional) com aproximadamente 80 fiscais para supervisionar a operação. Segundo ele, recursos tecnológicos permitem monitoramento remoto: “Não precisam ir in loco, já mostram que a linha não passou”, explicou.
O ex-servidor mencionou ainda que o sistema registra fotograficamente os usuários que utilizam o passe diariamente, gerando relatórios diários e mensais sobre os passageiros. Entretanto, observou que, embora a Agetran tenha acesso aos dados, o relatório completo fica restrito ao Consórcio Guaicurus.
Em declaração contraditória às informações oficiais anteriores, Alencar afirmou que “o TAG não cumpre o seguro e idade da frota” dos ônibus na capital. Ele contabilizou 197 veículos com idade vencida, número que difere significativamente dos 300 apontados por José Mário. Tais inconsistências nas declarações motivaram até mesmo a aprovação de um requerimento para acareação entre os depoentes das agências reguladoras.
Infrações em massa
O levantamento apresentado na CPI revelou um número assombroso: em menos de cinco meses, o Consórcio Guaicurus acumulou 1.726 infrações junto ao município. O auditor-chefe da Auditoria da Agetran, Henrique de Matos Moraes, detalhou os principais motivos das autuações: ônibus atrasados e os famigerados “fantasmas”.
Foram registrados 592 autos de infração por descumprimento do horário de viagem além do limite de tolerância – confirmando as constantes reclamações dos campo-grandenses sobre atrasos nos coletivos. Além disso, as empresas receberam 178 autos por omissão de chegada e 164 por omissão de saída – os chamados “ônibus fantasmas”.
“Quando não tem ônibus, quando não passa. Ele teria que chegar no terminal e não chega, teria que sair do terminal e não saí. Não compareceu no ponto de verificação. Quando ele chega atrasado é um tipo de tipificação, quando ele não chega é omissão”, esclareceu o auditor durante seu depoimento.
O Consórcio foi autuado ainda por 144 omissões de viagem: “Omissão de viagem esse carro nem se movimentou, não existiu. Tem lá programado uma tabela e ela não saiu”. A ausência de veículos reserva resultou em outras 110 infrações em 2025, conforme os dados apresentados pelo auditor-chefe, que concluiu sua exposição afirmando que “o Consórcio que se defenda depois”.
Higienização abandonada
Um dos aspectos mais alarmantes revelados na CPI diz respeito às condições sanitárias dos veículos. Segundo o depoimento do fiscal aposentado, os ônibus do Consórcio Guaicurus não passam por higienização há aproximadamente três meses em Campo Grande, expondo passageiros, incluindo crianças, idosos e trabalhadores, a ambientes potencialmente insalubres.
Quando questionado pela vereadora Luíza Ribeiro (PT) sobre a limpeza dos veículos, o fiscal respondeu com sinceridade desconcertante: “Olha, a gente fiscaliza, mas a gente não consegue pegar os 460 não”.
O ex-fiscal da Agetran (Agência Municipal de Transporte e Trânsito) informou que a última higienização completa ocorreu há cerca de três meses. “Às vezes a gente faz, acho que, não lembro se foi em janeiro ou fevereiro, fez uma higienização na garagem à noite. Mas acho que foi feita uma questão de limpeza”, afirmou, evidenciando a falta de regularidade na manutenção da higiene da frota.